A noiva - parte III
Continuação daqui
“ Ah! O amor! A terna e doce palavra que só o pronunciá-la já é uma carícia”
O que se contava dela era o seguinte. Filha única de uma família rica; o pai era um dos maiores armadores da colónia ( que o Governo português teimava em alcunhar de Província Portuguesa em África), era uma daquelas mulheres que por insondáveis e nunca explicados mistérios da natureza se distinguem naturalmente das demais, a sua beleza seria o seu martírio às exigências de um pai prepotente e autoritário que idealizara para ela um casamento com alguém que a fizesse feliz. Isto é; alguém ainda mais rico do que ela.
Isso parecia não incomodar a filha para quem as preocupações do pai eram para si o menor dos seus problemas. Era nova, só agora fizera os dezassete anos, dentro de meses iria para Lisboa cursar medicina na Faculdade Santa Maria, nunca se apaixonara, tirando o amiguinho da primária que lhe carregava a mochila e lhe aturava as birras, mas isso, via agora claramente, não passara de um inocente devaneio de criança e quando o amor surgisse casava com ele e pronto. Era isso, tinha tempo. Agora ia estudar e quando fosse uma médica famosa, ( pelo profissionalismo e competência que não pela vaidade) iria salvar muitas vidas que o mundo andava mesmo a precisar. E depois o pai ia mudar. Não era ela a menina querida dele? A filha por quem ele tudo fazia? Então?
Mas ela enganava-se. Era efectivamente a menina do pai, a sua menina querida mas, à sua maneira. Isto é! Compreendendo e aceitando que era a ele, pai, cabeça do lar e por isso mesmo responsável pela família, a quem competia saber o que era mais conveniente para a vida futura dela. A mãe já aceitara essa verdade. Aliás, já a sabia e trouxera-a com ela para o casamento. Por que raio não compreendia ela isso? Que ele só queria a sua felicidade?
De facto ela não compreendia nem tão-pouco se dera alguma vez ao cuidado da compreensão, porque se o tivesse feito seguramente o futuro não se lhe apresentaria tão radioso como se lhe afigurava agora.
Era uma época muito difícil para a mulher. Exceptuando a burca e a lapidação, as diferenças para as sarracenas não eram muito diferentes nem deveras significativas.
Ela, e o mundo feminino, e o masculino, já agora; ainda não sabiam mas isso ia mudar. A minissaia que mais rapidamente do que a ágil chita lá na savana catrapisca a desprevenida gazela, não só libertaria as bonitas pernas como as mentes e as personalidades, voava para ali.
Infelizmente para ela e para muitas, chegaria demasiado tarde.
Por enquanto era e seria assim. O homem sabe, pode e decide.
E esse conhecimento era levado muito em conta. Do que convinha às mulheres sabiam-no eles de ginjeira.
Foi para Lisboa estudar medicina, compartilhava com a tia, e família dessa, a casa que o pai atempadamente comprara para ela, filha; veio de férias passado um ano, regressou aos estudos, voltou novamente no ano seguinte e, subitamente tinha vinte anos.
E foi assim que na tarde de um Sábado do mês de Julho do ano de 1963, quando acompanhada pelos pais a encantadora menina se encontrava a degustar uns deliciosos camarões numa esplanada à beira da praia Morena, aconteceu que um rapaz no prosaico intuito de beber uma cerveja, franqueou o acesso à sala e os seus olhos esbarraram nos dela. Um raio que ali tivesse caído, tivesse ele a potência que tivesse, nunca provocaria tamanha devastação nem nunca os estragos seriam comparáveis. Foi devastador! Ela sufocou-se e num gesto irreflectido, considerando um pai observador ali ao lado, levou as mãos ao peito comprimindo o coração que sentia, querer de lá saltar.
E ele? Ah! Esse nada sabia, nada compreendia. Reparara sim no fogo daquele olhar que para sempre lhe queimara a alma, de resto nada compreendia. Instintivamente soube que não podia olhar mais para ela Vacilou, cambaleou e arrastou-se dali para fora como pôde. Nunca soube se efectivamente bebera a cerveja, ou sequer se a pedira.
Nessa noite dançou com ela…uma única vez. O zeloso progenitor antecipando as mais do que comprovadas certezas para onde a filha encaminharia o bailarico, sem qualquer cuidado ou respeito segurou-a firmemente por um braço e arrastou-a dali para fora.
Infundado intento, inútil e inglória veleidade. Foi só uma dança, mas o mais profundo e verdadeiro amor tinha sido mutuamente declarado, aceitado e para toda a eternidade jurado.
O pai opusera-se a esse amor, primeiro; exigira depois, gritara e decretara por fim. Não! Nunca! Ela calara, mas ai. Não há força na natureza que agrilhoe um grande amor. Não há força maior no universo do que uma vontade apaixonada.
Malgrado todo o esforço paterno, toda a vigilância a que estivera sujeita todas as condicionantes impostas, sujeições emocionais e outras, o facto é que aquele indómito coração apaixonado, no mais recôndito lugar do imensurável jardim da sua sumptuosa mansão, se encontrava naquela noite de sexta-feira do mês de Agosto de 1963, véspera da partida do seu amor para a guerra, nos seus braços trocando alucinadas promessas de amor e terrificantes juras de fidelidade eterna.
Não demorou muito ao pai tomar conhecimento da desobediência da filha, e num acto do mais tresloucado estado emocional, ter-lhe-ia também ele jurado, que nunca! Nem passando por cima do seu cadáver, essa união seria consumada. E perante o ar aturdido da filha, desfechara as palavras fatais que a ela lhe selariam o destino:
- Que o Diabo lhe dê destino e o acompanhe na ida para o inferno.
Enquanto se afastava espumando a sua ira, não ouviu a voz sumida e magoada da filha desfalecida:
- Oh meu pai, amaldiçoou a sua filha.
Alguns meses depois, uma bala perdida encontrava o seu caminho.
Continua...