Espero todos os dias, em baixo da tua janela, que reveles a tua presença através do teu intenso e doce aroma, que a brisa, minha confidente e amiga, traz até mim. Desde que te vi pela primeira vez que me quedei enamorado de ti. Perdi-me nos teus olhos e desejo ardentemente aforgar-me no teu belo corpo.
Oh! Esse teu belo e esguio corpo... cheio de ondulações e balanços quando te moves que fazem o mundo surgir ainda mais efémero aos teus pés...
E todos os dias resto ali...À espera...
À tua espera minha doce amada.
Todos os dias soltarei a minha voz para que ela leve até ti esta exaltada melodia carregada da mais pura das paixões.
Mesmo que as restantes janelas se escancarem e de lá assumam vozes arremessadas,
- Ó rais parta o Gato que não se cala!!! Catano que vou aí e te dou cabo do pio não tarda nada!
Consigo desviar-me de um objecto, que mais se parece um chinelo, e volto a chamar-te...
Nem eles! Minha amada. Nem eles me calarão! Jamais! Nunca o farão enquanto arder em mim este fogo eterno da paixão!
Afonso encontrava-se na sala de leitura quando um dos criados o informou que seu amigo Lúcio havia chegado.
Que raio anda esse tipo sempre cá a fazer? Como se não bastasse parece rondar Isabel!
Atirou com alguns papéis, em que trabalhava, com força em cima da escrivaninha bastante enervado. Sabia que não era o melhor dos maridos. Mas afinal teve que manter a promessa que fez a si mesmo que não lhe tocaria. Deixou-se consumir pela raiva de ter sido obrigado a casar com ela, mas a convivência com a sua doce esposa fez com que a visse sob outro olhar. Ela simplesmente não era nada arrogante como lhe parecia inicialmente. Apenas era uma mulher que gostava de se afirmar como pessoa, e nos tempos que vivam, tão injustos para elas, o seu esforço era digno de nota. Mas até o esforço era mal visto por uma sociedade essencialmente machista! E ele acabou por ser tudo aquilo que criticava. Julgou sem conhecer. Mas afinal, quem o podia censurar?
Ela era inteligente, sendo-lhe possível entabular uma conversa sobre diversos assuntos. E era bela! Oh! Muito bela! Uns olhos cor de mel. Algumas sardas, discretas, espalhadas sob seu rosto cândido e que lhe davam uma certa graça, cabelo castanho claro e uma pele divinal. O seu pequeno nariz arrebitado era a uma característica muito peculiar, e se em tempos o detestou, agora começava a duvidar que talvez já não viveria sem ele… Para não falar do seu doce odor. Mas passara demasiado tempo... Agora tinha que ir com calma e conquistá-la. Ultimamente parecia que ele lhe era indiferente e isso era a sua penitência!
Mas sempre que ele, Afonso, parecia finalmente estar a aproximar-se de Isabel eis que aparece o Lúcio para roubar todas as atenções para ele! Dizia-se amigo?
Arggh! Bolas para o Lúcio!
A verdade é que começava a desconfiar que algo mais existia entre eles do que a amizade… mas poderia ele censurar sua esposa?
Nunca lhe havia tocado! Na sua infinita teimosia! Muitas vezes queria deixar-se sucumbir pelo desejo mas lembrava-se que estava casado por obrigação e porque ela havia insistido! E esse pensamento tomava as rédeas. Neste momento já nem sabia o quê, ou quem, tinha as rédeas! Passara-se quase um ano! Tempo demais para deixar uma mulher como ela sem ser amada. E o certo é que ele nunca mais conseguira tocar em outra mulher! Devia estar tolo, ou doente, de certeza!
Levantou-se da cadeira e saiu da sala de leitura pronto para receber Lúcio, embora soubesse que sua mãe, como boa anfitriã, já o havia feito, mas queria ouvir qual o motivo apresentado por ele para justificar da sua vinda ali e perscrutar em seus olhos a verdade.
Chegou ao grande salão, recebeu-o um odor a fumo, a lareira já se encontrava acesa, pronta para receber a noite. Ninguém se encontrava lá! Nem sua mãe, nem Lúcio!
Saiu dali e num dos corredores encontrou Madelena, a governanta, que contava já com alguns anos de trabalho naquela casa, e não se cansava de lhe lembrar, sempre que julgava oportuno, que já havia andado com ele ao colo. Eram-lhe dadas certas liberdades de conduta, não só pelos anos de casa que tinha, mas também pelo seu elevado grau de responsabilidade.
- Madalena sabe onde está minha mãe e o meu amigo Lúcio que chegou há pouco?
- A Sr.ªDuquesa, Dª Margarida, recolheu-se um pouco antes de jantar. Provavelmente para vestir um agasalho, pois as noites esfriam e…
- Sim Madalena! E Lúcio? – Afonso demonstrava sinais de impaciência
- Se o menino me deixar continuar! Que assim está exaltado! Pensava-se que o casamento o sossegaria mas parece cada vez pior! – E obtendo um revirar de olhos impaciente por parte de Afonso continuou – O menino Lúcio foi até a estrebaria! Esta juventude está doida! A visita dá-se ao desfrute de sair da casa de quem o recebe para ir ver cavalos em vez de ver os donos destes!
Afonso saiu a chispar ódio encaminhando-se para a estrebaria. Sabia que àquela hora Isabel costumava ir lá tratar do seu cavalo! Ela tratava aquele animal com um desvelo impressionante!
Raios! Até um cavalo merece mais do que ele! Mas é hoje que eu os apanho!
No céu já se notava que o sol os abandonava mas deixava-os com um magnífico espetáculo de cores e o cântico orquestrado por alguns grilos. Mas nem isso amansou a alma conturbada de Afonso que entrou de rompante na estrebaria e viu Lúcio de costas a beijar Isabel! Como? O Infame?
Agarrou-o pelos ombros com violência e atirou-o ao chão bramindo,
- Canalha! Pulha! É isto que fazes à amizade que dizias ter por mim? Tornas-te amante de minha mulher?
Lúcio atordoado e sem perceber, inicialmente, o que o seu amigo gritava, levantou-se de imediato e tentava afastar-se de um Afonso certamente possuído por algo demoníaco!
- Afonso para! Estás doido! - Gritou a voz feminina agarrando-o pelo braço.
Mas aquela voz...
- Sofia!?!
- Quem é que esperavas que fosse? A Isabel!? - Sofia gracejou - Como tens coragem?! O que tu merecias é que fosse mesmo ela. - Ela sabia que havia prometido à sua amiga mencionar nada do que sabia a Afonso, mas isto era demais e ela não tinha sangue de barata!
Afonso virou-se para Sofia com ar de espanto e incredulidade - De que falas tu?
- Tu bem sabes do que falo! Não me faças envergonhar-te mais do que a vergonha a que já te submetes!
Foi um Afonso zonzo que se desculpou e saiu de ombros caídos dali. Lúcio foi ao seu encalço e encontrou-o cabisbaixo, encostado ao tronco de uma frondosa e velha árvore no caminho que dava até ao casarão.
- Como cheguei a este ponto? - falava rouco, numa voz carregada de tristeza
Lúcio, como bom amigo, escutou-o e deu-lhe uma palmada no ombro.
- Ó meu amigo pensavas que te traía? Com pudeste!? Nunca faria isso! Já há algum tempo que me apaixonei por Sofia, mas quis primeiro falar com meus pais para poder avançar com um pedido mais sério junto do Sr. Joaquim. Que, como bem sabes, tem mau feitio e guarda a filha como se ela fosse uma pedra preciosa. Que a bem dizer da verdade o é - disse sorrindo - Hoje vim até cá para marcar um jantar com ele e oficializar as minhas intenções. Mas quis falar com Sofia primeiro e como sei que a esta hora ela costuma estar por aqui vim dar-lhe a boa nova. Desculpa se não fui ao teu encontro primeiro. Sou um mau hóspede...
- Eu é que peço desculpa e lamento a minha atitude. - Afonso estava derrotado
- Mas afinal o que se passou? A que se referia Sofia? - Lúcio estava curioso
- Meu bom amigo tenho vergonha de falar-te. Peço que compreendas o meu silêncio - disse virando-se, finalmente, e olhando Lúcio nos olhos.
- Como queiras. Sabe que estou aqui para o que precisares. Ah! E já agora. Aceitas ser meu padrinho de casamento? - Lúcio sorria e pretendia aliviar a tensão do amigo. Intento esse que resultou num abraço, e num "Claro que sim!", de um Afonso cujos lábios sorriam através de um olhar sombrio.
Caminharam até ao casarão com Lúcio a falar de Sofia e um Afonso a pensar na Isabel. Na "sua" Isabel. Deixou Lúcio no salão com seu pai e foi novamente à sala de leitura, dando a desculpa de algo urgente para tratar, mas com a intenção de reflectir nas suas atitudes e ficar um pouco só.
Ficou cego de ciúmes e esses ciúmes significavam que amava Isabel. Como pudera não perceber isso e demonstrá-lo? Ela merecia-o. Fora egoísta ao pensar só no facto de ele ter sido obrigado a casar. Afinal fora ela quem fora arrancada à família e a tudo o que conhecia para cumprir um destino incerto. Ele não a honrara! Mas isso ia mudar! Esta noite tudo ia mudar....
Fim
PS - Espero que quem tenha seguido com paciência esta noveleta tenha gostado. Agradeço todos os comentários, e as preciosas sugestões, que me foram deixando. Um beijo aos meus queridos amigos que por aqui vão passando.
- Menina Isabel por favor coma mais alguma coisa! – Suplicava-lhe Mariana ao arrumar-lhe a bandeja do pequeno-almoço.
- Desculpe Mariana mas hoje não consigo mesmo engolir mais nada – E saiu para cavalgar, a única atividade que, de facto, lhe trazia alguma serenidade à alma atormentada.
- A menina ainda vai ficar doente! Ouça o que lhe digo! Já nem se lhe vêem as cores das faces!!!
Isabel já quase nem ouviu a última frase. E se ficasse doente pouco lhe importava. Afinal para quem iria fazer falta?
Estava casada há quase um ano e Afonso nunca lhe tocara! Tentara deixar que a camisa de noite mostrasse mais do que devia parecendo que fora inadvertido. Aplicou o seu charme feminino, como qualquer dama sabia tão bem fazer, sem surtir qualquer efeito… tudo sem obter qualquer reação! O seu marido parecia feito de gelo!
Porque a rejeitaria ele desta forma?
Ela sabia olhar-se ao espelho, não era feia! Mas afinal o que é que ela tinha, ou não tinha, que o impedia de se aproximar?
Fora do quarto a relação deles evoluíra agradavelmente. Falavam e discutiam, sobre diversos temas. Pôde constatar que afinal Afonso era um espírito livre, que respeitava a opinião feminina.
Será? Será que o seu marido não era dado a intimidades com damas?
Ou será que seriam outras as damas a desfrutar da sua intimidade?
Calar todas estas dúvidas e toda esta ansiedade motivava-lhe um grande nó no estômago! Como ia confessar a alguém que estava casada há tanto tempo e ainda era casta?
- Olá miúda! Acho que se escovares mais o teu cavalo ainda lhe cai o pêlo!
Ao virar a cabeça Isabel deu com a face de Sofia. A filha do Sr. Joaquim, o “dono da estrebaria”, como ele se auto denominava. Sofia era a melhor amiga de Isabel, tinham a mesma idade e fora Sofia quem lhe dera mais alento, com as doces brincadeiras infantis, aquando a sua vinda para um país diferente. Além disso, e vendo a amizade que as unia, Sr.ª D.ª Margarida, agora sua sogra, permitiu que Sofia tivesse a mesma instrução que Isabel, o que permitia às duas jovens ter muito em comum.
- Tens razão. Se calhar já chega… estava tão absorvida pelos pensamentos que nem percebi que já estava mais que bem escovado! Mas aqui o menino Érix parece que estava a gostar da massagem extra!
- Isabel – disse Sofia aproximando-se – o que se passa contigo?
Sem olhar para a amiga Isabel ia conduzindo Érix para o local que lhe estava destinado.
- Que se passa como?
- Não te faças desentendida! Sei que se passa algo! Conheço-te melhor que ninguém. E se queres que te diga nem seria preciso isso! Basta estar com o mínimo atenção ao olhar para ti! Estás mais magra, com ar abatido e até parece que as cores de estão a fugir das faces!
Isabel sorriu. Encontrava-se já ao lado de Sofia. – Ainda hoje a Mariana me disse isso, das cores das faces, ao pequeno-almoço!...
Sofia cortou logo – Claro! Nota-se à distância! – e como que adivinhando – O problema é o Afonso? Mas parece que até são amigos ao contrário do que se fazia prever.
Isabel suspirou. Estava cansada…
- Sim. Somos apenas amigos. – Deu uma ênfase propositada ao “apenas”
- Huh! O que queres tu dizer com isso?!
- Esquece Sofia! Tens razão, não devo estar bem!
- Não, não e não! Fazes o favor de me dizer! Só quero o teu bem. Já há muito tempo que arranjo coragem para te falar nisto, pois não me queria intrometer na tua vida intima mas agora deixaste-me com a pulga atrás da orelha!
Isabel voltou a suspirar. Talvez fosse bom desabafar.
- Está bem.Ganhaste. Mas, por favor, vamos até tua casa que a esta hora não corremos o risco de ser interrompidas. É que tenho medo dos ouvidos que as paredes do casarão possam ter.
- Medo? Bem… agora estou preocupada.
Apressaram o passo. Já sentadas a beber uma caneca de chá quente que Sofia fizera, esta insistiu.
- Conta Isabel. Precisas colocar para fora o teu medo.
Isabel encheu os pulmões de ar, como de isso renovasse a coragem que entretanto lhe falhara.
- Sabes… bem… eu e Afonso...nunca tivemos nenhuma intimidade na cama…
Sofia olhava estupefacta para a amiga como se não tivesse percebido, ou ouvido, bem.
- Não tiveram intimidade? Quer dizer que nunca…?
- Não… - enrubescendo e baixando o olhar, Isabel responde.
- Não percebo! Mas afinal que se passa com esse doido do Afonso!? Esse rapaz só pode ser louco! Eu logo vi que isto não ia dar certo depois daquela cena na Igreja! Mas isto? Quem esperava por isto! Que é que ele quer? Teve uma bela mulher oferecida de bandeja! E agora? Será que quer que lhe esfregue na cara que ele é um burro Eunuco?! E se porventura tem outra mulher só merece ficar! – Sofia estava furiosa e no seu ímpeto, que lhe era habitual, bradava o que lhe ia no pensamento. Parou de o fazer assim que viu que Isabel chorava copiosamente, e abraçando-a, afiançou.
- Tem calma Isabel. Eu ajudo-te a resolver isto! Ele não pode fazer de ti gato-sapato! Nem desprezar-te! Não sabe o que o espera!
Isabel não fazia ideia ao que a amiga se referia mas pelo menos desabafou.
Continua…
(brincadeirinha! Continuo aqui abaixo)
Dois dias se seguiram a esta conversa de amigas, e hoje, ainda mal o sol se levantara, já Isabel estava no estábulo montada em Érix e aguardava que Sofia a levasse para um destino misterioso que, segundo ela, a ajudaria.
Afonso ainda dormia quando deixara os aposentos que dividiam.
- Vamos Isabel – Surgiu Sofia montada numa meiga égua, tomando a dianteira para que esta a seguisse.
Já a manhã ia a meio pararam um pouco para descansarem e os cavalos tomarem algum fôlego.
- Para onde vamos? – Inquiria Isabel cada vez mais curiosa.
- Vamos a uma aldeia, agora não muito longe daqui, que tem uma mulher que pratica… hummm… alguns encantamentos e mezinhas.
- Estás maluca!? Vais levar-me a uma feiticeira?! Eu não preciso de bruxarias! Só preciso que Afonso me deseje como mulher! – Isabel já se começava a arrepender de ter confiado em Sofia
- Sossega. Não é uma bruxa. É apenas alguém que tem mais conhecimentos, e que sabe o que fazer com algumas plantas. Não te apoquentes que vai tudo correr bem. Se estás preocupada que te reconheçam colocas o capuz da capa que ninguém te descobre! Além disso, que tens a perder? Mal não faz! Não mais mal do que o burro do Afonsinho te está a fazer – Disse com desdém estas últimas palavras.
Isabel encolheu os ombros. A verdade é que já estava por tudo. Já ouvira tantas histórias sobre estas mulheres que entendiam que artes misteriosas, e que muitos achavam que foram a solução de vários males. No seu caso, revelava-se um desespero da causa.
Chegavam ao bairro judeu onde habitava a tal mulher, que dava pelo nome Mohan. A casa, caiada de branco, onde habitava ficava no cimo de uma colina e estava rodeada de plantas, algumas de aspeto exótico. Desceram dos cavalos e bateram à porta. Surgiu então uma senhora septuagenária tão agradável quanto amável. Muito baixa, olhos verde água, que com umas mãos muito enrugadas endireitava o lenço que lhe cobria os cabelos cinzentos. Convidou-as a entrar numa cozinha de limpa, solarenga, onde crepitava um fogo convidativo na lareira rodeada de potes de cozinha de vários tamanhos. Um odor doce e agradável as rodeava.
- Posso oferecer-vos algo para beber minhas meninas jovens e lindas, enquanto me dizem a que vieram? - Dizia-lhes ao mesmo tempo que as conduzia para um banco junto à lareira.
Enquanto sorviam a bebericagem, quente e suave, Sofia contava o motivo pelo qual se encontravam ali. Isabel permanecia muda, apenas assentia ao que era descrito.
- Pois bem. Acho que já percebi tudo. E penso ter o que necessitam. Volto já, fiquem à vontade.
Sofia deu uma cotovelada numa Isabel ansiosa e retorquiu.
- Vês minha tola! Experimentas o que ela disser e logo vês.
Mohan depressa reapareceu trazendo um pequeno frasco em mãos.
- Aqui têm. Basta que misturem isto com algo que o seu marido costume beber antes de se deitar e resultará. Ele a verá com outro olhar. Tornar-se-á certamente um homem cheio de viço para consigo! Seja o que for que se passa desaparecerá.
Isabel acautelou o frasco e o importante líquido que continha e seguiram, quase, em silêncio de volta a casa.
À despedida Sofia relembrou o que deveria ser feito, e atentou para que Isabel prometesse que cumpria sem receios os propósitos daquela pequena viagem.
Ao final da tarde puderam contar com a visita de Lúcio, que nos últimos tempos surgia com regularidade, embora parecesse que a relação entre ele e Afonso já tivera melhores dias. Ultimamente não era raro apanha-los em discussão acalorada por "dá cá aquela palha". Após ter deliciado todos com uma pequena interpretação ao piano, e a um breve jogo de cartas, Isabel, dando a desculpa de sentir cansada e querer acabar uma leitura que necessitava de mais concentração, recolheu-se para a sua sala de estar particular sendo seguida, para sua surpresa, por Afonso.
Pensando bem era a oportunidade perfeita! A caminho do aposento Isabel perguntou a Afonso se desejava que pedisse a Mariana para fazer-lhes um chá, talvez assim até dormissem melhor.
Afonso assentiu.
Isabel retirou de seu colo o pequeno frasco que apertou entre os dedos.
-É agora! – Pensou
E verteu o líquido na chávena destinada ao marido. Ela própria insistiu em levar o tabuleiro, o que não era uma atitude estranha da sua parte pois não era nada dada a elitismos, e não era a primeira vez que executava simples tarefa.
Afonso encontrava-se sentado num cadeirão a ler um livro quando Isabel entrou, pousou o tabuleiro e se dirigiu a Afonso com o líquido quente nas mãos.
- Obrigada Isabel - Sorriu-lhe de volta – Até me estava mesmo a apetecer um chá! Principalmente depois de falares nele! – Afonso olhou-a intensamente, como nunca o fez, o que lhe causou um arrepio.
Trémula, pelo efeito daquele olhar, dirigiu-se ao quarto de vestir com a sua chávena dizendo que iria trocar de roupa e seguiria para o quarto. Com um ligeiro aceno de cabeça, e a chávena e pires nas mãos, sem ainda terem tocado os seus lábios, Afonso laçou-lhe um novo olhar. Quente. Intenso. Como se a despisse ele próprio sem que ela precisasse de sair dali!
Mas afinal que se passa com ele? Será que aquilo era tão potente que só o odor o afetara?
Não. Mohan tinha dito que precisava de ser bebido!
Nesse mesmo instante Isabel sentiu Afonso imediatamente atrás de si. Ela ia falar-lhe mas ele deteve-a com um beijo ardente que lhe fez doer o fundo do ventre. Olharam-se, breve e intensamente, e voltaram a beijar-se demorada e sofregamente. Como se a vida deles dependesse daquele beijo! Isabel sentia que Afonso lhe desabotoava o vestido e num nada estava em combinação à sua frente, ajudando-o também a ele a despojar-se das suas vestes. Sentiu-lhe a língua quente, húmida, a tremer desejo, percorrer-lhe a pele do pescoço a descer-lhe pelo colo e a demorar-se em seus seios, percorrendo-os, levando-a a um deleite que julgava não existir! Deixou que a despisse assim… sendo beijada e molhada pela sua língua atrevida e trémula.
Ele deslocara-se para trás dela e sentou-a em seu colo enquanto ele próprio se sentava numa chaise do quarto de vestir. Afagava-lhe os bicos do peito com uma mão levando a emitir sons de puro prazer, enquanto levava outra mão até lá, onde algo parecia ter estado preso e quereria agora soltar-se em todo o seu fervor.
Finalmente sentiam-se um só, num puro êxtase! Num puro prazer. Parecia que o mundo rodopiava e terminara para voltar a surgir mais colorido. Após se terem acalmado, Afonso embrulhara-a num roupão e levara-a ao colo para o quarto. Para, no leito, voltarem a repetir a união orgástica.
Já ia alta a noite quando Isabel, meia dorida, se levantava acometida de uma sede intensa. Deslocara-se até à sala de estar, contígua ao quarto, com a finalidade de encontrar algo que lhe saciasse a boca seca. Quando, com espanto, pôde verificar que a chávena de chá que tinha levado, horas antes, a Afonso, com o líquido que ela julgara ser o causador do delito das cenas de paixão que acabara de viver, se encontrava intacto!
- Mas então se não fora o líquido mágico…? Fora ela!?! E só ela que o levara a ser tão arrebatador na demonstração do seu desejo! – Pensava Isabel sorrindo, e esquecendo-se da sede acordando Afonso com um beijo libidinoso, muito longe de ser a jovem virginal que fora até hoje.
Chegara o dia do seu casamento, o propósito da sua ida para Espanha quando tinha 10 anos. Obrigaram-na a realizar um papel que não pedira, o de noiva de um rapazola mais velho que ela. Embora a diferença de idades agora não seja notória, na época era algo assustadora!
Felizmente nutria pelos pais de Afonso, e agora também seus, um verdadeiro amor que fora, naturalmente, crescendo ao longo dos tempos. A relação que mantinha com eles, e apesar de pertencerem à alta nobreza espanhola, era forte e carinhosa. Algo que nunca tivera, ou sentira, com os pais que deixara há anos para trás, que eram pessoas mais rígidas e extremamente conservadoras. Vira-os hoje, no dia do seu casamento, tratara-os com simples cortesia. Talvez ainda não lhes tivesse perdoado o facto de a terem enviado para longe com tão tenra idade. Tivera, no entanto, sorte mas sabia bem que poderia não ter sido assim.
Obrigara-se a desenvolver uma maturidade fora do vulgar para uma mulher, ou pelo menos para o que se esperava delas. Fez por se instruir, por aprender cada vez mais, e até por executar algumas ocupações mais destinadas a cavalheiros. Por exemplo, não era de todo vulgar ver-se uma jovem dama dedicada a aprender a arte da esgrima, ela própria não conhecia ninguém! Mas seus novos pais eram condescendes para consigo e possuíam um discernimento fora do comum.
Apesar de o passado ter ficado para trás isso ainda a magoava, fizera então de um tudo para se fortalecer, quer a sua mente, quer a sua parte física. Nessa parte da sua vida ela podia exercer algum domínio e fora-lhe dada liberdade para isso.
Chegara aos 18 anos e começara a perceber que Afonso não fazia intenções de regressar. Não podia ser eternamente a noiva de uma pessoa cujo rosto já mal se lembrava! Se a fizeram ir até ali para se casar pois então que houvesse um casamento! A maioria das jovens da sua idade, e que pertenciam à alta sociedade, já se encontravam casadas. E os comentários começavam a florescer por entre alguns círculos de conhecidos, já ouvira um ou outro menos agradável, não que lho dissessem directamente, mas existia sempre alguém que se auto intitulava de "muito amigo" que não se rogava de lhe entregar a mensagem.
Dizia-se sobretudo que Afonso não a queria porque ela sabia demais para ele. Ou que sabia domar cavalos mas os homens não eram para ela. Enfim... mentes sujas sob uma capa polida por um sorriso hipócrita!
E estava agora, no quarto de vestir, sozinha. Mariana, a criada de quarto, que considerava uma amiga, já se tinha recolhido, e ela adiava a entrada na divisão que dividiria com Afonso, seu, agora, marido. Esfregando uma mão na outra, e tentando, inutilmente, afastar o nervosismo, começava a duvidar se fora boa ideia insistir no cumprimento do estabelecido. Um casamento arranjado pela conveniência de duas famílias da alta sociedade!
Não sabia há quanto tempo se encontrava assim, à espera. À espera sem saber bem do quê! Talvez de coragem para enfrentar a sua primeira noite com um homem com quem mal trocara meia dúzia de palavras quase arrancadas a ferros! Afonso que tinha todo um jeito de não ser nada dado a romantismos. Começava a desconfiar que ele a odiava! E aquela maldita cena na Igreja dera força a essa ideia.
Decidiu enfim transpor a porta que separava a divisão em que se encontrava daquela para a qual teria que se entregar. Rodou a maçaneta o mais lentamente que pôde tentando não fazer nenhum ruído. Penetrou na penumbra do seu futuro quarto, o luar entrava tímido pelas vidraças das grandes janelas. Existia um silêncio perturbador. Percorreu com inquietação o caminho até ao leito nupcial já com a sua roupa afastada convidando ao descanso, ou a algo mais... Exalou alívio ao constatar que Afonso não se encontrava lá. Estava só.
Deitou-se, um breve arrepio a percorreu ao contactar com os lençóis frescos. Já ia longa a noite, sentiu-o entrar na divisão, seus passos graves a aproximarem-se do local onde ela se encontrava. A cama queixou-se sob o peso do corpo que a transpunha. Ele estendeu-se sem lhe tocar, apesar disso sentia o calor de seu corpo. Queria que o acto de respirar soasse regular mas a sua sensação é que tinha parado de inalar o ar que necessitava! Mas Afonso deixou-se ficar assim. Longe se si sem lhe tocar até que amanheceu...
Isabel pouco dormira e quando conseguia deixar-se enlevar pelo sono voltava a acordar ao mínimo ruído, mas já ia alto o sol quando foi acordada por um leve bater na porta. Pestanejou e olhou instintivamente para o lado constatando que estava novamente só.
- Entre por favor.
A porta entreabriu-se com hesitação e surgiu a cabeça de Mariana.
- Bom dia menina dorminhoca! Posso entrar?
Isabel sorriu aliviada por ver uma cara amiga. E deixou-se finalmente descontrair pela conversa corriqueira e pela rotina diária.
Nesse dia Afonso estava bem disposto e trocara com ela mais palavras do que o costume! Isabel começava a pensar que afinal tinha tirado conclusões precipitadas a seu respeito. Ele era divertido, amigo e simpático. Via que era muito carinhoso com a mãe. Apenas não o era consigo mesma. Mas talvez fosse exigir demais logo à partida que ele fosse tudo isso com ela! Mas agora que estavam casados a cumplicidade surgiria certamente.
Entretanto, mais depressa do que julgava, caiu a escuridão. E com ela todo o ritual da noite anterior e ele voltou a não lhe tocar! Nem nessa altura, nem nos dias e noites que se seguiram...
Sentia-se mortificada pelo peso da rejeição. E calava-a. Mais uma vez sentiu-se só...
Passaram oito anos desde que Afonso estivera ausente. Oito anos! O tempo passa mais rápido do que aquilo que pensamos... Contava já com 26 anos e estava de volta a Espanha! E isso se devia às cartas, cada vez mais frequentes, que o pai lhe enviava a pedir, ou melhor, a exigir, o seu regresso para cumprir com o prometido. Na última missiva, dissera-lhe que ou ele regressava para o jantar de noivado com Isabel, já marcado para o início do próximo mês, ou ele iria buscá-lo pessoalmente!
Nada pois havia a fazer senão regressar. Tinha cumprido o plano de estudos estabelecido há já alguns anos e ficara a adiar o inevitável, sempre com a desculpa que estava a realizar contactos importantes para os negócios da família. Se bem que em parte isso fosse verdade, a principal razão era a sua fuga a um casamento arranjado!
Mas não iria só. Em sua companhia trazia um grande amigo que fizera na sua estadia por Madrid. Um companheiro das noites de folia. Sendo o amigo mais dado à vida boémia que o próprio Afonso, que lá teve as sua estorietas com jovens moçoilas mas nenhuma lhe resgatou o coração. Ainda bem. Senão tornaria a sua vida bem mais complicada.
Percorriam já a a orla de terrenos que pertenciam à sua família, depois de dias cansativos de viagem, quando uma forte cotovelada do amigo o tirou do dormitar induzido pelo chocalhar da carruagem.
- Olha que belo cavalo! E a cavaleira não parece menos bela!
-Pfft! - atirou Afonso - Como é que sabes se a cavaleira é bela?! Está de costas! Só lhe vês o cabelo. Já o cavalo, parece, sim senhor, belo. E sorte a minha deve ser um dos nossos, já que está nos terrenos que pertencem a meu pai. Mas uma mulher a cavalo!? Não era costume ver-se disto por cá antes de eu partir!
- Só de ti para ligares mais ao cavalo do que à cavaleira - atirou zombateiro o amigo - mas espera aí! Será a "tua" fedelha? - Chutou o amigo. Tratavam-na assim sempre que era necessário referirem-se a ela.
Afonso não respondeu. Será? Por esta altura ela devia ter 18 anos, uma boa idade para montar a cavalo. Mas o pai deixaria que ela andasse assim, naqueles preparos, cabelo solto e em corrida com o que lhe parecia um excelente garanhão! Não... não podia ser a Isabel. Talvez a filha de Joaquim, o responsável pela estrebaria e de por todos os cavalos que possuíam, e certamente mais habituada às lides com estes animais.
Passadas um bom par de horas encontraram-se finalmente no salão de estar de seus pais, após um breve descanso e um bom banho.
Lá fora, Afonso, pode ainda ver o garanhão a ser levado para a estrebaria, cansado, possante e de pêlo brilhante e bem tratado. Um belo animal como supunha. Mas para estar ali só podia mesmo ter sido "ela", a fedelha, a montá-lo. Como é que ela tinha pulso para um animal daqueles?
Conversavam com o pai sobre as suas peripécias enquanto a mãe pegava em sua mão. Sua mãe, Catarina, uma doce mulher mas de um forte carácter que conseguia do pai quase tudo o que cismasse, era uma excelente mãe. Deixara-lhe um grande vazio a sua ausência na vida dele. Agora regressado, a proximidade física ajudava a apaziguar as saudades sentidas.
Entretanto ouvem-se passos fortes, e ela entra no salão. Lúcio, seu amigo, levantou-se de uma assentada assim que percebeu que uma mulher entrara na sala. Seu pai também já se encontrava de pé e o próprio Afonso levantou-se, lentamente, não tinha pressa, nem vontade, nenhuma de a encarar.
Isabel usava um vestido de cores suaves, que deixava à vista um belo colo, poucos adornos, apenas uns brincos, cabelo claro e solto com ligeira ondulação. Uma pele aveludada belos contornos físicos. Era sem dúvida uma bela mulher! Mas não eram os seus dotes físicos que chamavam a atenção mas sim a sua presença forte. Algo nada previsível para uma mulher! A única característica que mantinha, e que Afonso se lembrava, era o nariz pequeno e ligeiramente arrebitado, e que até lhe dava harmonia à sua bela face.
Aproximou-se deles sem qualquer perplexidade. Olhar decidido. Olhos de um castanho vivo, e que faziam prever estar-se na presença de alguém com agudeza mental. Cumprimentou-os. Disse algumas palavras a Afonso, que ele reagiu com a indiferença que pode. De seguida perguntou ao pai, tratanto-o com carinho e por "pai", como se fosse essa a sua condição.
- Pai tens preferência por alguma melodia?
- Não minha querida hoje escolhe tu.
Sentou-se ao piano e tocou...seus dedos ágeis deslizando pelas teclas entorpecendo a mente de quem assistia.
O amigo entretanto chegara-se a ele e sussurrava-lhe ao ouvido,
Olhava pela janela, o único lugar onde os seus olhos podiam vaguear sem sentir que estava prisioneira. Porquê? Porque é que seus pais lhe tinham feito isto? Que fizera ela de errado para que a mandassem embora?
Sua mãe tinha-lhe explicado com a voz estranha, como quando ela tentava falar e o que lhe apetecia era chorar. E lembrar-se dessa voz da mãe deixava-a ainda mais confusa…
- Minha querida Isabel seu pai acha-a muito importante! E a menina é o nosso maior valor. Não se esqueça do seu poder! Não se esqueça de que é nossa filha e honre-nos.
Abraçou-a de seguida, e Isabel sentiu o seu pescoço a humedecer com as lágrimas da mãe.
Seu pai teve uma despedida fria, tal como a distância que sempre os separou. Os irmãos quase nem os viu, mantiveram as suas rotinas e as aulas dadas pelos professores que o pai tinha contratado. A única que estava inconsolável era a sua “ Tê”, a ama que sempre cuidara dela, e que pedia que a levassem também. Mas disseram-lhe que não podia ir, já existia alguém à sua espera para se responsabilizar pela sua educação. Despedir-se dela foi o que mais lhe custara até hoje! E a partir daí começou a sentir aquele peso na barriga, parecia que algo andava às voltas dentro dela a querer sair sem poder.
Tudo por culpa “dele”!
E “ele” estava sentado à sua frente a olhá-la com desprezo. Não gostava dela?
Pois que lhe importava! Ela também não queria nada com ele. Sempre que o seu olhar cruzava com aquela cara de barba rala dá-va-lhe vontade de lhe colocar a língua de fora em sinal de desprezo! E tê-lo-ia feito não fora ter prometido à Tê que não o voltaria a mostrar essa "falta de educação"! Tal como ela lhe chamara, desde a última vez que isso lhe trouxe um grande ralhete por parte de sua mãe, na altura em que tiveram por visita uma prima com a mania que tudo tinha que ser dela.
Mas porque é que o pai fizera isso?
Disse-lhe que ele seria o seu marido? Que tinha selado um compromisso, e que estes são para respeitar!
Queria lá saber de marido e de compromissos selados! Ela queria era saber da sua boneca! Pelo menos isso o pai não lhe tirara!
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Afonso acompanhara os pais, pois respeitava, tinha que respeitar, as decisões que eram tomadas pelo patriarca como bom, e obediente filho, mas ter que olhar para aquela pirralha de 10 anos, sentada à sua frente, de olhos esbugalhados e ar de gazela assustada tiravam-no do sério!
Ia casar com aquilo!? Como esperava seu pai que fosse casar com aquela amostra de gente abraçada a uma boneca como se só aquilo existisse no mundo!?
Cheia de sardas, tranças meias desfeitas, nariz pequeno e arrebitado, magra de dar dó! Irra! Iria de certeza ser feia de fugir! Pelo menos a casa de Madame Bounivier existia para lhe dar consolo nas horas menos boas.
Restava-lhe a esperança da viagem prometida! Iria frequentar estudos na Universidade em Madrid e tinha o desejo secreto de seguir para Inglaterra. Durante uns anos estaria longe do empecilho que acabara de entrar na sua vida! E até isso fora seu pai a decidir! Com a sua característica bonomia, não se fazia supor um homem que se sabia impor! E mesmo que as escolhas inicialmente lhe parecessem as piores ele sabia muito bem como lhe dourar a pílula! Até nisso!
Ohhh! Só agora passaram a fronteira e já estavam em terreno Espanhol. Finalmente! Teriam que pernoitar numa estalagem onde já os esperavam e aí teria oportunidade de dar-se à liberdade de não ter por companhia a pirralha sua noiva!
Hoje, e ao contrário do que é usual, sou acordada pelo meu pai.
-O que se passa?! Pergunto com ar assustado e estremunhado.
-Nada! Só que hoje vais comigo buscar o Pinheiro de Natal! Veste-te rápido e toma o pequeno-almoço. Em meia hora saímos.
Claro que ele sabia que meia hora não chegava…
Passada uma hora estava pronta e bem agasalhada. Lá fora esperava-nos um céu cinzento claro e um dia frio.
A marcha começou para a floresta onde o meu pai pretendia “chacinar” um pinheirito jovem que não veria mais a luz do sol, mas que se iria orgulhar de brilhar com luzes Natalícias durante 3 semanas.
A caminho do “Lago”, o terreno que era do meu avô, e onde cresciam alguns Pinheiros, eu imaginava uma família dessas árvores sem esperarem que um deles se iria embora para sempre! E que em lugar de ocuparem e embelezarem aquela pequena floresta estariam a servir os propósitos de embelezamento Natalício de alguém.
Quem inventou essa do Pinheiro? Há muitos Carvalhos por aí! Escolham um e deixem-nos em paz!
Pois meus queridos, mas vós sois mais bonitos e ficais lindos com enfeites e luzes a piscar! Além disso, podeis ver algo diferente, alegre, divertido e feliz! Qual é o Pinheiro que não sonha em ser a árvore de Natal de duas crianças e fazê-las sorrir todas as manhãs? Hã?
E não esqueçam que está para aí a moda das árvores de Natal artificias, não tarda nada sereis deixados em paz. Por isso desfrutai enquanto é tempo!
Por fim, chegamos ao que meu pai dizia ser o Lago, sem lago e com Pinheiros. Escolhemos… escolhemos. Um muito pequeno. Esse não! Outro torto. É que nem pensar! Outro ainda com a copa larga de mais. Eis que surge o perfeito! Ali escondido pensava que escapava! Malandro! Anda daí. Já!
O céu cinzento claro desceu até nós e traz um nevoeiro cerrado. Meu pai, com o Pinheiro perfeito às costas, dá voltas e mais voltas. Percorremos mais caminho de volta a casa do que para encontrar o Pinheiro perfeito!
- Olhe lá pai, não estamos perdidos?
- Não! Achas que me perdia? Já andei muito por aqui à lenha e às pinhas minha menina!
O certo é que me parece que já passamos por aqui pelo menos três vezes! Se não andamos aos círculos andamos aos quadrados! Mas ninguém me convence que não estamos perdidos…
Apesar do frio vejo gotas de suor no rosto do meu pai. Será um Pinheiro pequeno assim tão pesado?
- Ó pai está a ficar mais escuro… parece que vai anoitecer. Tem a certeza que não estamos perdidos?
- Já te disse que não estamos perdidos! Já voltamos para casa, eu só quis ver como estavam estes terrenos aqui para cima. Tem calma.
Hummm… eu tenho calma ele é que não parece estar muito calmo! Parece suar cada vez mais e com o Pinheiro às costas dá-lhe para passear a estas horas?!!
Derradeiramente noite estendeu-se sobre nós quando pudemos aconchegar-nos ao lume da estufa. Irra que frio!
O Pinheiro espera para amanhã.
Ouço uma conversa de surdina entre meus pais
- Estava mesmo aflito! Não conseguia achar o caminho de volta com aquele nevoeiro todo! E como já não ia para aqueles lados há algum tempo pior foi!
Tcharamm! Eu não disse que estávamos perdidos?!!???
Hoje ao almoço o meu filhote falava do 1º de Maio (sim, outro com letra maiúscula) com um certo desprendimento. Como eu e o pai tentávamos fazer-lhe ver que não era mais um simples feriado e lhe prometemos uma explicação, esta surge aqui. Para ti filhote e para os teus filhotes daqui a uns anos.
Corre o ano de 1886, são 4 da manhã meus filhos ainda dormem, encaminho-me para cada um deles e sopro-lhes um beijo na testa, não os quero acordar. Os mais velhos, um já com 13 e outro com 11, terão que se levantar daqui a uma hora para seguirem para o seu trabalho na fábrica de algodão. Bendita a hora em que lhe conseguimos aquele trabalho, pelo menos assim já ajudam no pão à mesa, embora me entristeça que percam assim a meninice. Mas naquela fábrica ainda aceitam crianças a trabalhar. E como ainda parecem crianças assim a dormir....
Os mais novos, o meu caracóis de 2 anos e Rita, a única menina, de 7 meses ainda ficam ao cuidado da mãe que lava, costura umas roupas para fora, cuida da casa e tem a sorte de ver as crianças crescerem. Luto para que um dia os meus filhos possam ver os seus filhos crescerem. Luto para que um dia os meus filhos não precisem de trabalhar e possam ir à Escola. Luto... e não lutarei sozinho.
Saio com o coração nas mãos e aperto nelas o cartaz, um que tirei do monte dos muitos que estivemos a fazer ontem até às tantas da noite. Nele está escrito uma das razões da minha luta. Os meus filhos e os filhos do futuro.
Cheguei a uma altura em que não distingo o dia da noite. Não sei para que vivo. Vivo para comer, dormir. Dormir pouco. E trabalhar. Trabalhar muito. Trabalho 16 horas por dia! Em meses mais apertados chego às 17 horas por dia! Saio todos os dias às 4 da manhã para entrar no trabalho às 5:30, e só a ela regresso por volta das 23:30 ou 00:30. Sem vontade de mais nada que não seja olhar para meus filhos e ganhar forças para ter coragem de me deitar e acordar no dia seguinte. Sim. Porque a minha covardia secreta seria a de adormecer para sempre...
Mas hoje. Hoje tudo mudará, acalento essa esperança. Hoje eles vão perceber que não pode ser assim! Afinal também somos gente! Nas nossa veias também corre sangue e bate um coração. Sei isso. Sinto isso!
Encontro meus colegas de profissão, mais serralheiros da mesma fábrica e muitos mais rostos desconhecidos. Hoje tudo mudará! E isso não está escrito nos cartazes mas nas nossas faces! Está impresso também na nossa alma. Somos agora tantos. Ouvi dizer que cerca de 500 mil trabalhadores enchem as ruas desta enorme Chicago numa manifestação pacífica. Não queremos mal a ninguém. Apenas queremos sentir-nos mais gente. Apenas pedimos o que achamos justo. Gritámos para que nos ouçam. Reivindicamos a redução da jornada para oito horas de trabalho. Será pedir muito? Eu acho que não. sinto que não! Mas também sinto este meu coração que bate angustiado sem saber porquê! Tudo está calmo apesar dos gritos e palavras de ordem.
Surgem gritos ao longe. não percebo que se passa! De repente vejo a polícia a tentar calar-nos. Como podem? Como ousam? Ó tristes que não sabem que aqui bate um coração!
Querem calar-me? Não querem que lute pelos meus filhos? Mas é por eles, pelos meus, e pelos vossos filhos, que aqui grito! Que aqui luto! Que aqui digo que sou um homem como os demais!
Ó infames que não sabem que aqui deixará de bater mais um coração. O céu foge-me... as ideias e a luta não fugirão eu sei que não. Porque eu... eu também tenho um coração... embora já não bata.
Mais corações deixarão de bater, mas hão-de perceber que esta é uma luta justa, por mim, por ti, por eles...
Três anos volvidos, em 1889, fala-se por aqui que o Congresso Operário Internacional, reunido em Paris, decretou o 1º de Maio, como o Dia Internacional dos Trabalhadores, um dia de luto e de luta. Meu pai morreu nessa luta! Ingloriamente meu pai morreu nessa luta... Sei que um dia, direi isto com glória, uma dia seu coração voltará a bater, esteja onde estiver, e sei que esse dia não tardará. Minha mãe, que perdeu o seu olhar já há muito naufragado, não acredita, mas que sabem as mulheres?
Esse dia chegou meu pai! Estamos em 1890. Passaram 4 anos! Mas finalmente os nossos corações têm direito a bater! Os trabalhadores americanos conquistaram a jornada de trabalho de oito horas. Um dia meu querido pai, daqui a muitos anos, todos os trabalhadores lembrar-se-ão que morrestes por nós. Morrestes por mim, por nós e por eles! Para que todos saibam que merecemos ser Homens! Podemos lutar. Merecemos reivindicar. Afinal meu querido pai, nós somos o "trabalhador"! A massa operária, como lhe chamam, e as massas têm mais poder do que aquilo que lhes tentam fazer acreditar!